09 outubro 2005

dissociação

Acordou com a casa já cheirando a almoço. O nescau de ontem, embaixo da cama, se transmutara em um cemitério de formigas. Tinha chovido irremediavelmente a madrugada inteira e agora a rua nadava no descaso da prefeitura. Pela janela do quarto espiou a varanda. O sol fazia uma aparição modesta porém calorosa. A matéria da próxima prova boiando no vaso orfão de planta fez com que suspirasse aliviada. Uma desculpa, era tudo o que precisava para dormir até ao jantar. Aí lembrou.
Sentara por lá mesmo para olhar o pôr-do-sol. Mas o sol estava tímido e não veio. E a chuva chegou mansinha. Ela, que nunca acertava direito a roupa com os termômetros sentiu frio. O guarda-chuva tinha sido mais uma vez deixado para trás no interregno da chuva. Percebeu os mamilos endurecendo repreensivamente. Ele, quem ela secretamente esperava, não chegou. Sempre vinha. Atormentava-a até à exaustão e ela gostava. Mas fazia que não. Xingava e enxotava fazendo cara de brava. Hoje ele faria questão de reparar nos seus faróis acesos. Agradeceria a gentileza dizendo ter iluminação suficiente, obrigado, as letras do livro novo não eram assim tão muidinhas! Ela o chamaria de porco chauvinista, desgraçado machista!
-Deixa-me em paz que eu preciso estudar! E continuariam os dois dividindo o banco olhando para a lagoa, e de vez em quando, um para o outro, disfarçadamente. Depois que essa dança começara, nos poucos dias em que ele não vinha, o sol ia embora sem tanta pompa, e a lua, contrariada, iluminava ainda menos que do costume. As crianças gargalhavam com menos vontade e a água de côco vinha invariávelmente azeda. Hoje era a chuva quem lamentava. Um chocolate quente e um edredom, urgente.
Levantou da cama e pescou a matéria da prova. Passou pela cozinha, enfiou um pão com molho do frango do almoço de ontem no estômago e resgatou a bicicleta da garagem. A prova ia ser complicada. Muita coisa para ler, tentou em vão se concentrar...
Do pé-de-nada que adentrava a varanda, um passarinho azul experimentou pela primeira vez as suas asas.

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