06 junho 2006

descompassos- II (maktub)

Fechou o envelope sem reler o conteúdo. Não quis correr o risco de voltar atrás mas sabia cada palavra de cor.
"Vontade de falar ao vivo e a cores. Despejar logo todas as dores por achar que é a única solução lógica e plausível se eu quiser saber a resposta e glorificar ou erradicar de vez essa esperança que apenas prolonga meu martírio. O problema é que na hora as minhas cordas vocais sempre resolvem me abandonar, esqueço todas as gramáticas e consigo no máximo emitir delírios desconexos diversos do objetivo inicial. Para bom entendedor...estou... sou afim de você. Sem termos elegantes e socialmente corretos, sem motivos ou explicações maiores como costuma ser com esses assuntos. Desde quando? Não sei, acordei um dia e tinha descoberto, do mesmo jeito que descobri um dia que uma membrana me separa do mundo exterior e que, por mais que eu deseje ardentemente às vezes, eu não me transmuto em outros, sou sempre eu, ainda que sempre tão diversa. E como não saberia dizê-lo, faço do jeito que me é mais fácil, covarde, mas igualmente eficaz, e escrevo. E faço-o assim mesmo, de forma egoísta não me importando em saber que tipo de dilemas criarei, apenas escancarando esse sentimento que grita alto demais e que exuda pelos meus poros. Se eu quero respostas? Preciso e agora elas virão inevitávelmente já que até silencios podem ser respostas claras, apesar de um pouco mais dolorosas."
Releu várias vezes tentando acreditar que estivesse acordado. Olhou a data do envelope que chegava com um mês de atraso e, desesperado, procurou o tênis debaixo da cama. Tudo o que sempre quisera e um pouco mais tinha acontecido no espaço de alguns segundos. Maktub. Estava escrito do modo mais literal possível. Um mês. Tinha perdido um mês mas planejava recupera-lo nas próximas décadas. Calçou o segundo sapato e saiu sorridente em direção à felicidade. Do outro lado da cidade alguém, de cima de um banco ajeitando o cinto no chuveiro ligou a agua com mórbida tranquilidade.

2 comentários:

Fugu disse...

Gosto muito quando você escreve assim: afiada, exata, sentida. beijo você.

Joana Careca disse...

"Se eu quero respostas? Preciso e agora elas virão inevitávelmente já que até silencios podem ser respostas claras, apesar de um pouco mais dolorosas" ADOREI.
Beijos
Joana