09 maio 2015

Você deveria escrever mais, me disse. E entre o álcool, o descostume com o sotaque e o resto de um sonho que a memória se esforçava em reter, eu tive que perguntar outras três patéticas vezes....
Que devia escrever mais, ele me disse enquanto descia edredon abaixo se preparando para beber de mim. Desliguei o botão da cabeça e deixei o corpo sentir.  Que devia... mais? E com esse beijo nos meus outros lábios entendi tudo.

nota de falecimento

Aqui jaz um amor que viveu o quanto fazia sentido. Até um pouco depois do seu tempo. Que ficou moribundo muito tempo se negando a perecer, obstinado em seguir sua existência.
Uma vida que acaba não falhou, cumpriu seu ciclo, que de certa forma se realiza plenamente na morte. Assim, o Amor que morre não é menos valioso. E nunca dele se diga que não deu certo, pois o Amor dura o tempo do Amor, que pode ir além ou aquém do tempo de vida dos que se amaram. E ao contrário do Homem, o Amor só morre de morte morrida. É impossivel finar precocemente, por mais que com o objeto do amor se cortem todos os laços. Vai se gastando aos poucos, como sola de sapato novo no asfalto, ou na areia vermelha e quente da minha cidade. E esvaído todo o desejo, vazio de toda angústia, sossega-se finalmente o Amor em Paz. E há ainda aqueles onde o Amor é tanto, que sobra, transborda em sorrisos e gestos capazes de contagiar uma cidade. Uma epidemia de felicidade para todos que o testemunham. Hoje o sol brilhou muito e desconfio que foi a última réstia de algum grande amor que explodiu para o mundo sua última luz.

13 fevereiro 2014

entretanto

Enquanto não te esqueci cortei o cabelo. Bem curto. Seus cachos preferidos de enrolar nos dedos, espalhados pelo chão do salão. E como já estava ali, aproveitei para pintar as unhas de vermelho. Arrumei a casa em obsessivo perfeccionismo para depois sujar tudo outra vez com a receita nova de bolo que você jamais experimentará. Enquanto não te esqueci folhei muitas páginas de livros que não li entre tantos sobre os quais nunca falamos. Engordei 20 quilos engolindo lágrimas saudosas e quando veio o verão, suei 25 quilos correndo para fugir das lembranças que ainda me perseguiam. Aí tive que comprar roupa nova, que desconhece o teu cheiro, e não há uma delas que apareça nas poucas fotos que tenho de nós.
Voltei ao violão, que passou muito tempo encostado na parede, e a ele cantei as minhas penas desafinadas, em plena harmonia com essa nossa história tão fora de mão. Depois aprendi melodias novas, de músicas que sequer lembrei de questionar se você gostaria de ouvir.
E quando dei por mim eu era outra. E para essa outra você já não faz sentido.

03 fevereiro 2014

agricultura

Entenda que amor é fruta, com tempo de rega e cuidado. Tempo de ser flor. Beijada pelo sol, a balouçar na melodia do vento. Aspirando em se tornar fruto que vai amadurecendo devagar, no intervalo entre as estações, ganhando texturas novas, apurando a cor e o gosto até que vire suculento alimento da alma. Pode mesmo crescer baldio, selvagem. O amor que floresce apesar da adversidade, das intemperies. Mas não se engane. O amor tem seu tempo de boa colheita. Colha seu fruto no tempo certo, pois amor que não se colhe é comido no pé por pássaros vadios. E deixam no talo apenas a semente nua. Que depois de uma noite de tempestade buscará o aconchego da terra, se preparando para germinar na proxima colheita.

11 janeiro 2014

"O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível."
Adélia Prado


Um membro amputado dói, muito depois da cirurgia. Seis pés debaixo da terra
e ainda a coceira chata, a picada, o fogo que não tem maneiras de ir embora. Como se ao corpo ardesse a saudade do pedaço arrancado que ainda sente como seu.
O amor que se perde queima a dor de um membro fantasma.

21 setembro 2013

saudade perfumada

Daqui, do meio da multidão de amigos que juntei para me esconder da minha solidão, te vejo em fragmentos por onde quer que me volte. Ombros parecidos, o jeito de andar.  Teu mesmo sorriso de lado e,  porque não, um piscar safado. E o perfume. Esse seu perfume que acende minha loucura,  passou por mim agora e eu só pude sorrir. E suspirar. E quase compensa, por todas as vezes que o telefone toca e não é você.

15 setembro 2013

"Eu estou distante da tua pessoa com a intenção de evitá-la como a um inimigo; mas ainda  incessantemente te procuro em minha mente. Reavivo tua imagem em minha memória e inquietantemente me traio e contradigo. (...)"

Carta de Abelardo a Heloísa. Séc XII

07 junho 2013

7 de Junho

Há 15 anos atrás começava a guerra que mudou a história de várias gerações de guineenses. Interesses que não eram os da maioria condicionaram nosso destino para sempre. Para melhor? Provavelmente não. Amigos emboscados por bombas que levaram vidas e membros. Outros tantos que os nossos caminhos não mais cruzaram. O dia-a-dia pacato. Banho de chuva com os amigos do prédio, banho de tanque com as primas no quintal da avó. Convencer o primo a subir a mangueira, roubar goiaba da nha Helena, ou só mesmo sentar no muro e ler as histórias em quadrinhos trazidas pelo pai na última viagem. Jogos de polícia e ladrão, trinta e cinco, berlindes, malha, pimponeta. E outros que a memória já só recorda quando passo em alguma esquina de Bissau e vejo replicado em outras crianças, que mal sonham o que era naqueles tempos, a Bissau da Praça de Império. Dos Carnavais do Ntrudo. Kau peganha rabada. Badjuda n'mistiu. Sin findiu kadera, ba misti bu dona, atrivido.
Podes levar o que couber numa mochila, minha mãe me disse. Vinte minutos para juntar tudo o que interessa. Documentos, uma muda de roupa e memória congelada em meia dúzia de fotos. Nestes momentos percebemos bem como é supérfluo quase tudo que nos rodeia. E até hoje, volvidos 15 anos, nada de material que deixei pra trás me fez falta.
Mas a guerra me roubou meu país e o resto da infância.

03 junho 2013

sobre o Amor que fica


Me diga então, que faço com esse Amor que não nos serve mais e que se recusa a sair porta fora, como você, malas em punho, sexta-feira passada. Melhor ignorá-lo, como se ignora uma criança que faz birra? 
- Fique aí no canto de castigo Amor, até que eu aprenda tudo que fiz de errado. E segure essas lágrimas, porque ninguém lhe bateu, ainda!
Talvez se não fizer muito barulho? Deixado sossegado em um canto possa adormecer, como esse seu novo filho, perdido em sonhos felizes, que teus braços acalentam. Mas o Amor não tem mais teus braços para se aconchegar. Apenas vagueia por aqui, feito um louco coletando lembranças perdidas entre as curvas do cérebro, bêbado de saudades. E me atrapalha com sua inconveniência. Me amarra à cama e deixa a alma em dias de chuva. Mexe no meu fogão e queima a tarte de maça que você gostava tanto.
Saí à rua e levei o Amor comigo, entre becos estreitos e trânsito fechado, o Amor não se perdeu. Me seguiu e não consegui me desvencilhar. Esteve sempre comigo pelos bairros perigosos, me fez até sorrir ao apontar o jardim onde primeiro se juntou a nós, até lá apenas um estranho par de mãos dadas.
Como se mata um Amor? Dentre todas as religiões, ele talvez seja Budista. E precise morrer para nascer de novo. Mas eu, que desvio de incautas formigas que trilham meus mesmos caminhos, não saberia, de cabeça fria, matar um amor que vi chegar e crescer.
Pode ser que, com o tempo, o Amor se esqueça que existe. Demente, se perca no meio de tanta tralha que a vida nos faz juntar. Ou se mantenha escondido, onde eu não precise sofrer por lembrar que ainda está aqui, perdido atrás das contas para pagar, das recordações do último almoço em família, da pilha de papéis que prometi organizar três anos atrás. E fique aí, mofado, mirrado, no seu canto. Um Amor enrugado, desidratado e desnutrido que durante muito tempo me esforcei por não alimentar. E que farto de tão pouco cuidado me deixe, saia finalmente porta fora para virar mais um Amor-mendigo, sem-teto, à procura de um novo lar.