pedaço

Desgraçado! Na confusão da mudança tinha se esquecido desse detalhe. Empilhou os livros e os discos em caixas organizadas. A caixa do Chico. Os estrangeiros. Os brasileiros, e os autores desajuizados. Tinha tido o cuidado de dividir os móveis do jeito que ele não ficasse desfavorecido. Conhecia-o bem, sabia que ficaria anos se alimentando em pé na cozinha se não tivesse deixado para trás a mesa que ganhara da avó. Mas o safado tinha se dado conta que faltava uma coisa e mesmo assim tinha ficado calado. Só olhando-a empacotar os ultimos três anos em caixas de televisão.
Lá estava ela, jogada no sofá novo da sala nova, que no momento mais parecia area de estoque de empresa de eletrodomésticos, pronta para esquecer de vez aquela loucura toda. Foi quando a constatação lhe chegou como um soco nos colhões que nunca teve.
Desavisada deixara que lhe surrupiasse um pedaço.
E agora? Como saber que naco de si tinha ficado com ele? E se lhe fizesse falta essa lasca perdida ora navegando em corpo alheio? Como correr para os braços da vida faltando uma perna? Abraçar o mundo se nos falta um braço? Para que bate o coração se lhe falta a aorta? Como sonhar bons sonhos se nos falta a matéria de que são feitos os sonhos?
Se deu conta que ainda havia outro problema. Carregava consigo um bocado que não lhe pertencia e não tinha jeito de encaixar.
Como esquecer alguém cujo pedaço nos permanece entalado no coração?